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Antipoema 10: Blue para Amy Winehouse (João de Jesus Paes Loureiro)

Sim, foi um anjo.
Um anjo torto, talvez,
que das bordas do abismo fez do canto
apelo a ecoar nas catedrais do tempo
e não soubemos há tempo compreender.

Amy teimou sonhar
no mundo avesso ao sonho.
Mundo que só queria a seiva de seu canto
de uirapuru com navalhas na garganta.
Queria decidir seu tempo de sonhar.
O sonho em cápsulas de crack custa pouco
e ilude a liberdade possível de uma escolha…
Não compreendeu que na droga
é possível comprar a qualquer hora
o prazer de sonhar…
Mas é um sonho que mata.
Pois a morte não sonha e não tem hora.

Foi uma diva disfarçada de mulher comum.
De uma graça desajeitada.
De uma beleza em desalinho.
De voz ancestral numa garganta eletrônica.
De lábios suculentos e tímido sorriso.
De cabeleira farta como cascata represada num turbante.
De nariz em rude perfil delineado com delicadeza.
De olhos graúdos de vamp e mansidão no olhar.

Uma beleza selvagem debatendo-se
nas jaulas domesticadas do lugar comum.
Beleza gloriosa mas estranha
e reduzida a frangalhos pelo tempo.
Psicografava em tatuagens a sua alma.
Pinturas corporais na pétala da pele
tornaram-se inscrições roídas e arruinadas
pelos vermes invisíveis do crack, cocaína,
heroína, ecstasy e kotamina.
Os piercings tentavam no seu corpo fixar
os dias da mocidade esquecidos no diário.
A pele foi ressecando, sob sóis noturnos,
pendurada no varal dos ossos.
Ela se fez viver morrendo e sepultando-se
em fotos, vídeos, youtubes, espetáculos.
Mas sobre tudo em fotos.
Tumbas sucessivas da beleza em corrosão.
Rosto de deusa grega nos altares de pubs e de alcoóis.
Olhar sonâmbulo de quem queria desperta ver o sonho.
Tantas transgressões, enfim, tanta ternura.
Apenas impecável a voz,
voz uterina soando incandescente
dos abismos do ser.

27 anos.
23 de julho de 2011.
Em Canden, bairro de Londres.
Às 16 horas Amy se morre para sempre.
Vestida unicamente de tatuagens,
testamento no corpo-pergaminho.
No braço esquerdo: “Nunca amarrem minhas asas.”
No braço direito: o signo da sorte é “ferradura”.
No antebraço esquerdo,
uma levíssima “pena” não revela suas penas.
Na barriga, uma ironia sutil: “Olá marinheiro.”
No seio esquerdo: “Blake’s”, quer dizer: “do Blake”,
ofertório de posse ao talvez único amor.
Noutra parte do corpo está escrito: “Menina do papai.”
Declarou, certa vez, que sonhava ter filhos, ser feliz
bem longe do cotidiano em que vivia.

Na internet Amy Winehouse olha-me do outro lado do eterno.
Em silêncio escuto sua voz de tabaco e cristal.
Canta um blue de uma tristeza em pânico e gloriosa:
“Eu disse não, não, não”.
E tenho a sensação de que um anjo,
anjo que um dia agarrou-se numa estrela cadente,
está cantando agora do mais profundo de todos os abismos.
Uma gota de luar rola das pálpebras da lua
e tomba de meus olhos no poema.

(João de Jesus Paes Loureiro)
ps: Estava eu "navegando na net" - expressão muito brega, tô sabendo - , quando de repente me deparo com esse lindo poema póstumo sobre a Amy Winehouse. Poxa, não resisti e quis compartilhar com vocês. Achei essa obra prima no blog do Zeca Camargo, quem o fez foi João de Jesus Paes Loureiro, um grande poeta paraense. Espero que apreciem! Meu carinho à todos.